Agro avança e Brasil não tem onde armazenar “uma Argentina inteira” de grão

Em 2022-23, à exceção do Rio Grande do Sul, Brasil deve ter safra cheia e histórica.| Foto: Michel Willian/Arquivo/Gazeta do Povo.

Neste ano, quando o Brasil deve ultrapassar pela primeira vez a marca de 300 milhões de toneladas de grãos, um gargalo logístico se acentuará, alcançando um patamar igualmente histórico: 120 milhões de toneladas não terão espaço de armazenagem.

É mais do que toda a safra da Argentina, que enfrenta o terceiro ano consecutivo de seca e irá colher apenas 75 milhões de toneladas, contra uma estimativa inicial de 122 milhões de toneladas. A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) recomenda que os países tenham estruturas de armazenagem para comportar pelo menos 1,2 vez o tamanho de suas colheitas.

A defasagem brasileira vem se acentuando desde 2000, quando o país ainda tinha silos para guardar, se necessário, todas as safras de um ano. Segundo dados da Conab, desde 2010 a produção de grãos aumentou 82% – de 149 milhões de toneladas para 271 milhões em 2022, e podendo chegar a 310 milhões neste ano – mas a capacidade de armazenamento cresceu apenas 35%, de 136 milhões de toneladas para 183 milhões. Assim, é possível que, pela primeira vez, a estrutura de silos do país não dê conta nem sequer da safra de verão, estimada em 188 milhões de toneladas – e isso contando apenas os principais produtos, como soja, arroz e milho.

“Não ter armazém no campo custa mais caro para o agricultor e a sociedade. Todo mundo paga essa conta. 85% da estrutura de armazenagem está em centros urbanos e industriais, ou nos portos, e daí os caminhões ficam em filas, sem armazém, nem secador nem estrutura suficiente para receber essa produção. O produto começa a perder qualidade e o preço do frete acaba explodindo, é um ciclo vicioso bastante sério”, aponta Paulo Bertolini, presidente da Câmara Setorial de Armazenagem de Grãos da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq).

Abimaq defende triplicar linhas de crédito para armazéns

A diminuição desse gargalo logístico, por meio de mais linhas de crédito aos produtores, interessa à indústria pelo potencial de movimentar a economia. Exportadores de estruturas de silos e armazéns, os fabricantes brasileiros veem no mercado doméstico um gigante adormecido.

O cálculo da Abimaq é que para zerar o déficit de armazéns no país seriam necessários investimentos de R$ 80 bilhões. O pedido feito ao Ministério da Agricultura é para pelo menos triplicar o montante destinado a financiar as estruturas, atualmente na faixa de R$ 5 bilhões por ano. Com R$ 15 bilhões, diz a Abimaq, seria possível adicionar 10 milhões de toneladas por ano de capacidade de armazenagem.

Em 2021, o governo Bolsonaro editou decreto para qualificar para leilão 124 armazéns da Conab, mas o trâmite burocrático não se encerrou antes da mudança de governo. E, agora, é provável que os leilões nunca ocorram.

O atual governo rema em sentido contrário, e o próprio presidente Lula, e seus ministros, têm declarado que a intenção é retomar a compra de produtos pela Conab para formar estoques públicos e regular o mercado. Atualmente, os armazéns da Conab representam cerca de 1% da capacidade estática instalada no país.

Armazéns estatais são mais caros e ineficientes

“Se o governo for fazer, fica mais caro. E você continuará tendo as estruturas na cidade, no mesmo perfil de 85% da armazenagem hoje disponível. Não inova em nada. E envolve dinheiro público comprando produção num momento e vendendo em outro. Tudo com dinheiro público e não particular”, diz Bertolini.

“Se for linha de crédito para o agricultor, ele vai pagar, vai devolver esse dinheiro e na hora de armazenar saberá o que é interessante dosar para vender no momento mais adequado. Nós temos que nos espelhar no que está dando certo no mundo todo. Os Estados Unidos não têm isso, e eles são um modelo que precisamos seguir nesse aspecto”, acrescenta.

A Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária (CNA) considera que há uma defasagem preocupante, e crescente, nas estruturas de armazenamento de grãos do país. Mas não ao ponto de exigir capacidade estática de 370 milhões de toneladas, como levariam a crer as projeções da FAO.

“A gente não enfrenta o inverno rigoroso dos Estados Unidos, temos a safrinha, e podemos armazenar duas a três vezes no ano, usando a mesma estrutura. 370 milhões de toneladas de capacidade estática é um número que não faz sentido”, diz Elisângela Pereira Lopes, assessora técnica da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA).

Ela reconhece, contudo, que o déficit preocupa. “Começa a assustar quando você sai de 85 milhões de toneladas de déficit para 122 milhões, de uma safra para outra. Se continuarmos crescendo de forma exponencial, teremos problemas”, assinala.

A situação é mais crítica acima do paralelo 16, que divide o país ao meio. “Quando a gente olha para as regiões que mais produzem, que são o Mato Grosso e o Matopiba, o déficit já está chegando a 60 milhões de toneladas. É a metade do déficit do Brasil”, destaca Elisângela, enfatizando que uma política de fomento à construção de armazéns precisa olhar para essas regiões menos estruturadas.

País tem poucos armazéns dentro das propriedades

Em outra frente, a Abimaq aponta que é preciso pulverizar mais as linhas de crédito atuais. Hoje a maior parte dos recursos estaria indo para indústrias e cooperativas, o que ajuda a explicar o percentual de armazéns construídos nas fazendas, estagnado em 15% desde 2010.

“É preciso vocacionar o Programa para Construção e Ampliação de Armazéns (PCA) para dentro das fazendas, não para as indústrias e cooperativas, que têm acesso a outras linhas. Existe um interesse dos bancos em centralizar o dinheiro num grande tomador, é muito mais barato para o banco do que fazer pulverização. Mas, para o país, pela necessidade do agro brasileiro, é melhor que esse investimento aconteça dentro das fazendas”, enfatiza Bertolini.

O déficit de armazenagem “on-farm” é reconhecido pelas cooperativas, que, no entanto, entendem que não devem ser vistas sob o mesmo prisma de outras indústrias, também grandes tomadoras de empréstimos.

“A gente não pode olhar a cooperativa como um CNPJ apenas. Hoje 71% do quadro social das cooperativas agropecuárias brasileiras é composto de milhares de agricultores familiares, pequenos produtores. E eles precisam ser olhados de uma forma especial na formulação de políticas públicas, porque isoladamente não teriam condições de estruturar investimentos robustos e ter competitividade”, diz João Prietto, coordenador do setor Agro da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB).

Falta de espaço para armazenagem aumentou o uso de silobags nos últimos anos; na foto, recurso é utilizado em terminal graneleiro da Argentina, em 2017| Albari Rosa / Arquivo Gazeta do Povo.

Armazenar “on-farm” exige habilidades gerenciais

A decisão de instalar um silo na propriedade, além de exigir investimento pesado, demanda que o agricultor esteja disposto a entrar praticamente em um novo negócio. O produtor Sérgio Fortis, de Goioerê (PR), diz que a família planejou por quinze anos dar esse passo. O retorno do investimento em um complexo com capacidade de armazenar 250 mil sacas deve levar outros dez anos.

“A gente vê o armazém como uma outra empresa. Tem a empresa-fazenda e a empresa-armazém. Existe toda uma complexidade de secar, limpar, e manter a safra armazenada. É como um outro negócio, com novos funcionários, outras habilidades, administrações diferentes”, explica Fortis.

“Hoje o agricultor bem-sucedido é considerado um empresário rural. Aquele agricultor caboclo, que anda com agenda e tal, está ficando para trás. Para administrar uma propriedade é preciso cuidar dos detalhes e do custo minuciosamente, como uma empresa”, diz.

Com silo próprio, produtor consegue fugir de descontos por umidade

Fortis está apenas no segundo ano de operação com silos próprios. Ele destaca dois motivos que foram decisivos para o investimento. Primeiro, a logística: “Nossa região é muito forte em safrinha de milho, e na hora da colheita as cooperativas se entopem de caminhões, não conseguem receber a safra. O caminhão fica o dia inteiro para descarregar”, conta.

O segundo motivo se explica com a calculadora na mão: “Nesse ano, começamos a colher e estava chovendo. Quando conseguimos entrar na lavoura, colhemos soja com 25% de grãos ardidos. Se eu mandasse na cooperativa, ela daria uma tolerância de 8%, e me descontaria os outros 17%. Guardando no meu silo, eu faço uma mistura desse grão com os outros, que normalmente só tem 1% de avariados, e não tenho desconto nenhum. Com o manejo, eu mantenho o padrão de classificação. É o que as cooperativas fazem. Elas misturam e não são descontadas”, enfatiza.

Ele observa, contudo, que é preciso ter um volume significativo de grãos para compensar o investimento. E estar preparado para as sazonalidades da agricultura. “Aconteceu uma coisa incrível nessas duas safras de soja que recebemos. A primeira, no ano passado, foi de quebra extrema por causa da seca, a pior em 40 anos. E a desse ano vai ser a melhor safra de todos os tempos”, conta.

Não sem motivo, na agricultura não se recomenda contabilizar perdas e ganhos em cima de uma única safra, mas avaliar a sustentabilidade econômica do negócio numa perspectiva de vários anos. A Argentina, por exemplo, enfrenta o terceiro ano consecutivo de quebra das colheitas pela falta de chuvas. No Rio Grande do Sul já são duas quebras seguidas.

 

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